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França: o gigante de pés de barro

  • Bruno Andreoli Vargas de Almeida Braga
  • 9. März 2017
  • 9 Min. Lesezeit

Reflexões sobre o colóquio “Os espaços de batalha contemporâneos: fazer a guerra sem fronteiras” realizado na Universidade Lyon III – Jean Moulin sob a organização do grupo de Mestrado de Direito Internacional

Minhas impressões sobre a sociedade francesa são várias e difusas. Poderiam ser definidas como um misto de fascinação urbana e artística e estranhamento sobre certos costumes e práticas sociais. Afirmo que são impressões normais para um estrangeiro acostumado a um modo de vida totalmente diferente (“desenvolvimentista”, como frequentemente ouço proclamarem por aqui).

Todavia, alguns aspectos da postura francesa perante estrangeiros são assombrosas. Como estrangeiro que sou, posso afirmar que o grau de rejeição ao estrangeiro e ao turista tem a mesma origem e natureza, variando pela intensidade (turistas sofrem menos, pois ficam menos tempo alhures). Arrisco dizer que esse posicionamento perante o outro é traduzido mais como uma invasão de quem não divide os mesmos usos e valores culturais do que como uma possibilidade de integração social do diferente.

Tal modo de se portar perante o estrangeiro se intensificou em tempos recentes, devido a todos os acontecimentos políticos e sociais que borbulham no globo. Escalada de violência no Oriente Médio - sobretudo em áreas sensíveis à Política Internacional, como Síria e Palestina que envolvem, a um só tempo, temas delicados como petróleo, refugiados e comércio de armamentos – reverberam no cotidiano europeu sob a forma do terrorismo e do êxodo de refugiados.Todavia, os franceses não parecem perceber de onde estão sendo atacados, por quem e por qual motivo. E por isso respondem da forma mais elementar que a ocasião poderia permitir: pegar em armas.

Soldado francês em prontidão na Capital Francesa, durante a Operação Vigipirate. Photo: Reuters/Gonzalo Fuentes

A reação não poderia ser diferente. A França sofre uma das mais graves crises sociais da sua história e a reação natural de um país que entende ter seus valores fundamentais e instituições nacionais ameaçadas é investir em armas e declarar guerra ao inimigo, mesmo sem saber ao certo para onde atirar. Não estou aqui afirmando que a postura é equivocada. De um ponto de vista lógico, o investimento em contraterrorismo é plausível – a primeira reação de alguém que se vê encurralado é mostrar as garras. Todavia, como uma situação que advém de um problema social, a solução não pode descurar de uma perspectiva social, primando por um ponto de vista puramente militar e estratégico.

A política francesa (e europeia como um todo) tem colocado os pés pelas mãos na tentativa de dar uma solução a contento ao problema dos refugiados. Constantemente atrelado ao terrorismo, a imigração forçada, intensificada com os conflitos na Síria – que supera a causada pelo conflito bósnio, estimado em mais de dois milhões de refugiados - tem sido vista como caso de polícia, sob a justificativa de que a segurança das instituições nacionais (como afirmam os burocratas de carreira) está em risco, sendo necessário a todo custo defendê-la. Segundo novo estudo realizado pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR, na sigla em português), o número de refugiado no primeiro semestre de 2016 chegou a 3,2 milhões, sendo a maioria decorrente do conflito sírio. Os sírios representam o maior número de refugiados em todo globo, constituindo 5,3 milhões de um total 16,5 milhões de deslocados até a metade de 2016.

Gráfico dos dez países que mais receberam refugiados no período meados 2013-meados 2016. Gráfico do Relatório Anual de 2016 do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados

O discurso feito pelo Presidente francês Hollande em janeiro desse ano parece destoar dos posicionamentos adotados pelo seu governo. Enquanto de um lado defende que o sistema democrático somente se sustenta se pautado no respeito a liberdades fundamentais - o que perpassaria, necessariamente, pelo acolhimento de refugiados -, seu governo se pronunciou no início de 2016 no sentido de que se recusaria a receber mais do que um número limitado de refugiados - cerca de trinta mil -, sendo enfaticamente contrário ao mecanismo permanente de redistribuição de deslocados proposto pela Alemanha. Segundo especialistas, tal postura refletiria, na época, uma tentativa de angariar apoio em face do avanço do partido de extrema direita nas intenções presidenciais de 2017.

Não há nada de novo no front. Basta que surja no horizonte qualquer crise que possa vir a colocar em xeque a supremacia política e a estabilidade econômica euro-americana para que pululem de candidatos extremistas os palanques eleitorais. Suas exposições refletem valores xenofóbicos, intolerantes e agressivos que jamais dialogariam com uma abordagem crítica do problema. Assim sendo, os programas de governo propostos por tais vertentes políticas refletem uma tática de inversão do problema: ao invés de unir esforços para solucionar a questão dos refugiados, tais políticas pretendem escolhê-los como potenciais causadores de mazelas sociais europeias, como forma de ganhar apoio popular contra políticas de acolhimento de refugiados. É o caso, por exemplo, da pretensa alegação da Frente Nacional (partido de extrema direita francês) de que os refugiados trariam consigo doenças e o aumento do terrorismo. A falha no posicionamento dessas correntes políticas é que o alvo escolhido é, antes de tudo, a principal vítima do problema do deslocamento forçado de pessoas.

Refugiados na "Selva de Calais", como é conhecida o campo de refugiados improvisado formado em Calais, norte da França.  Sobre associação entre o estrangeiro e a doença ver: http://sur.conectas.org/impacto-das-crises-sanitarias-internacionais-sobre-os-direitos-dos-migrantes/

Os imigrantes têm dificuldade em se inserir na sociedade francesa, diante da imagem de que são eles a fonte dos problemas econômicos e sociais do país, o que reflete na baixa oportunidade de trabalho e na sua incapacidade de acessar o ensino superior. Até mesmo uma parte dos franceses descendendentes de imigrantes não se reputa parte da comunidade francesa, posto que a discriminação dificulta o intercâmbio de culturas.

Não me espanta, portanto, um discurso populista que defende maiores investimentos em armamento ou políticas de assimilação de imigrantes mais estrita (isto é, maior rigidez no controle de fronteiras). O que não pode ser encarado com naturalidade é o espaço acadêmico assentir com tal discurso agressivo e ufanista de “defesa da cidadania francesa” e de sua “juventude”, ou da “República livre, fraterna e igualitária”.

A partir do momento em que um colóquio acadêmico é organizado em torno da questão dos espaços de batalha contemporâneos - em referência à onda de atentados terroristas na Europa e, sobretudo, na França -, inserido no quadro de pesquisas sobre Segurança e Defesa Nacional, para dar voz a, apenas e tão somente, militares do alto escalão das Forças Armadas francesas, percebe-se, de pronto, que os acadêmicos também entendem como acertada uma abordagem militar da questão da defesa nacional, como se esta não dialogasse com problemas sociais, como o repúdio ao refugiado e o fato de a França ser um grande exportador de armamentos para países do Oriente Médio e Ásia.

Presidente francês em visita oficial à Arábia Saudita, em 2013. O país é o maior importador de armamentos da França. Sobre a incoerência entre a política de combate ao terrorismo e o fato de ser grande polo exportador de armamentos, ver http://operamundi.uol.com.br/conteudo/opiniao/39147/contradicoes+de+hollande+e+possivel+combater+o+terrorismo+e+vender+armas+a+arabia+saudita+ao+mesmo+tempo.shtml

Equivocam-se na medida em que uma política pública de defesa e segurança nacional deve dialogar com diversas áreas do conhecimento, como a geografia urbana e as ciências política e social. O território nacional como novo teatro das operações de conflito armado deve ser visto sob uma perspectiva social que permita questionar a razão pela qual tais e quais alvos são escolhidos para serem atacados ou quem são seus perpetradores e os motivos que os levam a crer que tal ação deve ser adotada. O simples fato de o tema da imigração em massa de refugiados para a Europa ser vinculado ao estabelecimento de movimentos islâmicos radicais no Continente reflete um pré-conceito com relação a tais indivíduos.

O discurso político atual reúne, a um só tempo, crise econômica e necessidade de maiores investimentos em armamentos. Ora, esse binômio é ilógico, ao menos em termos orçamentários, e mostra a real predisposição da política francesa para com o problema: eleger como inimigo o imigrante. De um lado, a crise de refugiados forçaria um dispêndio de recursos do Estado francês para manter a ordem pública, como o financiamento de ajuda humanitária para os refugiados que chegam ao território francês. De outro, a sua presença em território nacional justificaria automaticamente um investimento maior em segurança. O resultado desse binômio seria menos verba para as necessidades sociais e econômicas da França e de seus cidadãos. A abordagem que proponho é, portanto, aquela que entende ser o preconceito e a discriminação os verdadeiros alvos a serem combatidos, e não o imigrante como o inimigo a ser neutralizado sob a justificativa de combate ao terrorismo.

Muitos dos questionamentos levantados ajudam a perceber os objetivos por detrás das ações dos combatentes, colocando em relevo seus valores políticos e sociais e suas verdadeiras intenções. Servem, outrossim, como autoreflexão, na medida em que os políticos terão condições de perceber que tais motivações terroristas decorrem, em grande parte, da intolerância e exclusão social do imigrante - sobretudo o árabe - produto de um atrito cultural crescente, bem como da política de exportação de armamentos para regiões que sofrem com conflitos armados, donde provém a maior parte dos refugiados mundiais.

Dessa forma, poderiam ser intentadas outras formas de intervenção que não a militar, como a inclusão social através da oferta de empregos. Todavia, tais indagações passam, muitas vezes, ao largo dos debates travados na Universidade, como se o importante fosse mesmo qual a porcentagem do Produto Interno Bruto – PIB – que o próximo Presidente irá destinar aos investimentos em armamentos. Não que tal tema não tenha a sua importância. Ocorre, entretanto, que tal abordagem demonstra a falta de tato político no que toca ao tratamento da questão, o que gera um ciclo vicioso de ódio recíproco entre imigrantes e franceses, na medida em que franceses identificam os imigrantes como fonte do problema, tratando-os como caso de polícia, o que intensifica o preconceito, enquanto estes, cada vez mais excluídos socialmente, são facilmente captados pelos veículos de propaganda jihadista, que promove o ódio aos valores ditos ocidentais.

Ao adotar tal abordagem equivocada, a comunidade acadêmica permite uma participação mais acentuada de estrategistas militares nos meios de debate. Infelizmente, a participação de tais experts acaba contaminando o espaço - que deveria ser rico em termos de análise científica - com pontos de vista extremamente enviesados, que insistem em abordagens imediatistas extremamente técnicas - como a quantidade de recursos destinado ao Ministério da Defesa ou o contingente deslocado para a proteção das grandes cidades francesas – que não resolve o problema, vez que suas raízes são mais profundas.

Vez ou outra, a questão social é relembrada e trazida em forma de questionamentos, porém, os militares, cuja formação é apolítica - como fazem questão de relembrar -, olham com espanto seus interlocutores, como se tal perspectiva social do terrorismo internacional fosse elucubração teórica, que não dialoga com a prática. Respondem de forma vaga, utilizando-se das expressões acima mencionadas - como se fossem autoexplicativas - para se esquivar das problematizações sociais sob as quais estão erigidos os atentados terroristas. Contentam-se, por fim, em afirmar que o terrorismo não é ideologia, mas sim instrumento político adotado pelos defensores da Sharia. O esforço conceitual é válido, não fosse evidente a falta de reflexão sobre tal afirmação. São, na sua maior parte, empregados de forma acrítica nos discursos. Percebe-se sua eloquência a partir do momento em que são utilizados para alicerçar medidas absurdas, como a "desradicalização" – o que envolveria um tratamento psiquiátrico dos terroristas, o que em muito se aproxima de uma lobotomia - e a criação de uma Guantánamo à la francesa. Caso a primeira medida não funcione, a segunda haveria de dar cabo ao problema.

Ou seja, além de disparatada, há falta de liame causal entre a medida proposta e a definição sob a qual se constrói. Em outras palavras, como pode o Estado de Direito, como valor político da mais alta valia das sociedades ditas “civilizadas”, sofrer tamanho atentado – em termos de violação de liberdades fundamentais - em nome do combate a tal e qual identidade política - também tida como absurda?

Tais discursos refletem uma instabilidade jurídica e política temerária, na medida em que as instituições jurídicas francesas – alicerçadas no respeito absoluto às garantias fundamentais e no Império da Lei - têm sido frequentemente questionadas por não saberem abordar a questão do combate ao terror. O Poder Judiciário é eleito o inimigo do povo por ser a primeira instituição a qual se recorre para deliberar sobre as infrações legais relacionadas à prática do terrorismo, quando na realidade existe para proteger o povo, em todas as suas colorações.

Por trás da palavra flexibilizar, leia-se, portanto, destruir o Estado de Direito, uma vez que tornar mais rígido o enfrentamento ao crime significa dizer, na prática e em termos mais brandos, regimes de exceção que violam garantias fundamentais, como o devido processo legal e a proibição da tortura.

Cartaz em apoio à Frente Nacional durante as eleições de 2010.

Portanto, propostas como a necessidade de flexibilização do Direito para refletir de forma mais precisa as necessidades da sociedade, vez que aquele tem se mostrado insuficiente para atender às demandas desta – como é o caso do combate ao terrorismo -, são, na realidade, uma incoerência, na medida em que, em nome da defesa do Estado de Direito francês (alicerçado no trinômio liberdade, igualdade e fraternidade) pretendo, eu mesmo, Estado francês, desmantelá-lo para combater de forma “mais eficaz” aquele que o põe em risco. Em outras palavras, “se for para matar, que seja eu o carrasco”.

O verdadeiro desafio do Estado francês é controlar a luta social interna enquanto se defende do islamismo radical. Isto é, dominar o impulso interno de tornar menos rígido o Estado de Direito enquanto se combate o terrorismo, a fim de evitar perder de vista que tal medida acabará tornando vítima aquele que se busca em primeiro lugar proteger: o Estado Democrático de Direito.

A postura acadêmica advém de uma visão política mais larga, abraçada pela maioria da sociedade francesa. O ambiente na Europa vem se tornando acentuadamente belicoso e os discursos nacionalistas não permitem uma análise crítica dos problemas sociais franceses. Cabe à comunidade acadêmica mostrar seu valor em momentos de crise, não importa em qual domínio científico, deixando aflorar o seu senso crítico com relação aos problemas que permeiam a sociedade na qual está inserida e não aplaudir discursos que negam a realidade segregacionista e discriminatória da sociedade francesa e que convidam os imigrantes a se retirar caso não se adaptem aos valores fundamentais da República Francesa – leia-se, caso não estejam satisfeitos com o tratamento recebido.

 
 
 

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